Publicado em 23/07/2021 por Luzia Kikuchi
Muita gente costuma dizer que “os números não mentem” ou que “1 + 1 sempre será igual a 2”. Porém, o fato que pouca gente conhece é que, para que algumas operações aritméticas tenham sempre o mesmo resultado, é necessário seguir algumas regras básicas da aritmética. E isso envolve, particularmente, as operações com o “zero”.
Brahmagupta, que foi um matemático hindu que viveu por volta do século VII, foi quem mais contribuiu com os conhecimentos que temos hoje sobre operações aritméticas, que posteriormente também contribuíram para a Álgebra. Algumas de suas contribuições são essas três regras básicas da aritmética.
- “Zero é um elemento neutro da adição”.
Isto é, um número somado ao zero sempre será o próprio número.
1 + 0 = 1 | 2 + 0 = 2 | -4 + 0 = -4 |
- “Um número multiplicado por zero é sempre zero”.
Não importando se o número é positivo ou negativo, a multiplicação por zero sempre resultará em zero.
1 | 0 | -4 |
Isso vale também para o cálculo de raízes quadradas e potências quadradas.
|
- “Zero dividido por qualquer número é sempre zero”
Aqui também não importa se o divisor é positivo ou negativo, sempre será zero.
0 | 0 |
E um número dividido por zero?
Este é o caso problemático. Brahmagupta acabou fazendo uma afirmação de que zero dividido por zero seria igual a zero. Porém, se utilizarmos essa definição, em alguns casos, vamos acabar chegando em absurdos como 1 = 2.
Ian Stewart, no seu livro “Almanaque das curiosidades matemáticas” na página 94, faz uma explicação bastante clara de que, normalmente, quando dividimos por um mesmo número, o resultado é 1. Então, se aplicarmos, hipoteticamente, essa definição para o caso 0 0 ou
teríamos:
Se = 1, temos:
4 = 4 1
4 = 4 (
)
4 =
4 =
4 = 1
Eita! Chegamos a um absurdo aqui! Então, esse é um dos motivos que não podemos dividir nenhum número por zero.
Até hoje, não há um consenso entre os matemáticos do que considerar a divisão por zero. Mas, o mais aceito é que zero dividido por zero é uma indeterminação. Ou seja, não retorna um valor numérico.
A história do zero
Nos livros de História da Matemática mais conhecidos, como o de Boyer (2012), Roque (2012) ou Eves (1990), fala-se muito pouco sobre a origem do zero. Boyer (2012), particularmente, dá uma visão bastante eurocêntrica de sua origem, acreditando que a origem do zero tenha começado com os gregos e que os hindus, possivelmente, incorporaram em sua matemática após o estabelecimento do sistema decimal posicional por lá. Mas, também afirma que existem muitas controvérsias envolvendo o assunto na História da Matemática.
Já nos livros de Roque (2012) e Eves (1990), há uma visão mais ponderada sobre a origem do zero e que, além de ser pouco conhecida, é muito difícil de ser explicada. Tanto Roque quanto Eves mencionam que, na antiga Babilônia, há registros de uso do zero com a conotação de vazio ou como demarcador de posição, mas não se têm registros do uso do zero como um número. Eves ainda faz uma leve menção sobre a utilização do zero na civilização maia e também afirma que a história da matemática hindu ainda merece ser melhor investigada, pois há muitas contradições e confusões envolvidas. Segundo o autor, isso se deve, muito provavelmente, por erros de tradução ou pela dificuldade de interpretação das escritas dos autores hindus.
Não me dando por satisfeita, resolvi procurar então no portal de periódicos da CAPES, algum estudo que mencionasse a história ou origem do zero. Eis que tive a grata surpresa de encontrar um artigo muito interessante intitulado “The enormity of zero” (A magnitude do zero – em tradução livre), escrito por George Gheverghese Joseph: pesquisador matemático, nascido na Índia, mas que recebeu parte de sua educação no Quênia e, posteriormente, no Reino Unido. Atualmente, dedica-se a estudar as contribuições históricas e sociais da Matemática de culturas não europeias.
Nesse artigo, é possível ter uma visão um pouco mais abrangente sobre as origens do zero vindo de diferentes povos. Segundo Joseph (2002), existem pelo menos cinco possíveis civilizações que utilizaram a noção de zero: os egípcios, os babilônios, os chineses, os indianos e, na América Central, os maias. Os indianos e os maias são os que atribuíram ao zero diversos significados, que são mais próximos da visão atual, e que inclusive utilizavam o zero como um número. Em nenhuma das civilizações anteriores, como a egípcia, babilônica e chinesa, o zero é usado com significado de número.
Segundo Joseph (2002, p. 158) os gregos herdaram muito do conhecimento matemático e científico dos egípcios. No entanto, diferente dos egípcios, que ocupavam boa parte da matemática em assuntos relacionados ao cotidiano, que podem ser vistos em problemas do Papiro de Rhind, os gregos se interessaram em estudar e evoluir a geometria axiomática em detrimento de todo restante. Por conta disso, esse povo preocupou-se pouco em desenvolver as notações do seu sistema numérico.
Essa constatação de Joseph, vai de encontro com a suposição que Boyer (2012, p. 155), que citei anteriormente, sobre a origem do zero ser grega. Na realidade, segundo Joseph (2002, p. 158), ao contrário dos gregos, os indianos foram os que mais se dedicaram a estudar a aritmética em detrimento da geometria axiomática, por exemplo. Brahmagupta foi um dos primeiros e mais relevantes nomes que contribuiu para o desenvolvimento da Aritmética, e seus trabalhos foram difundidos também na Álgebra, principalmente nos trabalhos de Bhaskara: outro nome relevante da matemática. Uma das principais contribuições de Bhaskara, em relação ao trabalho de Brahmagupta, foi em relação à divisão por zero (HILLESHEIM e MORETTI, 2016, p. 238).
(E você achava que Bhaskara era inútil na sua vida, hein? Se não fosse por ele, nem as suas contas básicas iam bater sempre… rs)
O sistema numérico foi difundido na Europa pelos muçulmanos, sendo a Espanha e o que corresponde hoje a região da Sicília, os principais intermediários dessa transmissão para o restante do continente.
Outra curiosidade sobre o zero: ele é par ou ímpar?
Nesse mesmo artigo de Joseph (2002), conta-se uma situação que ocorreu na década de 70 em Paris, no qual foi determinada uma lei de trânsito no qual apenas os veículos de placas com finais ímpar poderiam circular pela cidade. Mas, e as placas com finais zero? Poderiam circular ou não? Reza a lenda de que os motoristas evitaram de serem multados, já que os agentes de trânsito não saberiam responder a essa pergunta! rs
A resposta para essa pergunta depende muito em qual conjunto você for incluir o zero. Isto é, se ele for incluído no conjunto dos números inteiros, o zero é par. Porém, se ele for incluído no conjunto dos números naturais, normalmente, o zero não faz parte desse conjunto. Isso se deve ao fato de que o conceito de par só é aplicado ao conjunto de números naturais, associados aos conceitos de números primos e fatoração, no qual o menor número natural é o 1, excluindo dessa forma o zero. Ainda assim, segundo Joseph (2002, p. 163), alguns matemáticos que trabalham na área de fundamentos da matemática consideram o zero como um número natural e também um inteiro. Para esses, o zero é par por extensão.
Outros matemáticos ainda dizem que o zero não é par e nem ímpar. E essa discussão vai longe… Basicamente, essa dificuldade surgiu por conta do conceito de par e ímpar ter surgido sem considerar a existência do zero e dos números inteiros.
Eu recomendo a leitura completa do artigo de Joseph, que é muito interessante. E caso você não tenha fluência para ler em inglês, eu fiquei sabendo dessa dica ótima do instagram da Sabrina Xavier (@estudanteeternamente) usando uma ferramenta online chamada DeepL tradutor. Ele pode ser baixado no computador também para ser usado off-line. Eu fiz o teste com um parágrafo desse artigo e achei que fica uma tradução bastante aceitável.
Gostou dessa história do zero? Quais outros assuntos sobre matemática você gostaria que eu trouxesse aqui no blog?
E se você quiser ver as explicações com uso de animações, assista ao vídeo que estará no ar a partir das 21h.
2 comentários em “Por que não se pode dividir por zero? Zero e sua história”