Como aprender ideias abstratas com mais facilidade?

Só aprendemos no concreto? Será que isso é verdade ou mais uma falácia na área de aprendizagem?

Publicado em 28/05/2021 por Luzia Kikuchi

“Isso é muito abstrato para a minha cabeça”.

Todo mundo já deve ter dito essa afirmação anterior, alguma vez na vida. As situações que podem levar a tais afirmações podem variar de acordo com a familiaridade e o contexto de cada um.

Por exemplo, uma pessoa que não está acostumada a apreciar obras de arte, pode se sentir particularmente “desconfortável” em não compreender a expressão e a importância de certas expressões de arte, por não representar necessariamente algo que vemos no nosso cotidiano.

Veja essas obras de dois tipos de movimento artístico diferentes. Qual você prefere?

Wassily Kandinsky
Diego Velázquez

De forma similar, muitos consideram também que a Matemática é um tipo de ciência muito abstrata, principalmente, quando se trabalha com teoremas que partem de axiomas, esta última que não é passível de ser provada baseando-se no real. Basicamente, os axiomas são definições intuitivas assumidas como uma verdade (como o caso de não poder dividir por zero, por exemplo).

Por conta dessa característica da Matemática, que é considerada uma ciência formal e não experimental, é plausível pensarmos que, nem sempre, é possível exemplificar suas ideias no real ou no concreto. Então por que será que ainda existe uma corrente na área de Educação, especialmente, entre os professores dos anos iniciais do ensino básico, defendendo o uso de materiais concretos (tais como ábaco, material dourado e sólidos geométricos) para o ensino de matemática? Mas, por outro lado, professores desse mesmo ciclo de ensino também insistem em continuar ensinando algoritmos da soma, subtração e divisão sendo que eles poderiam ser melhor compreendidos de forma intuitiva?

Essa pergunta “martelou” em minha cabeça por muitos anos, desde quando comecei a atuar no ensino básico. E, finalmente, em 2013, resolvi escrever um trabalho a ser apresentado em um evento que reunia estudantes e pesquisadores na área de Ensino de Matemática, na cidade de Quilmes, na Argentina, com o título “Desconcretizar para concretizar o ensino de Matemática”. Nesse trabalho, problematizei sobre o excesso de valorização da representação do real (ou concreto) no ensino de matemática e as consequências negativas que elas podem acarretar para o próprio aprendizado dessa disciplina no futuro.

E, o estudo em que me apoiei para escrever sobre essa temática é o de Kaminski, Sloutsky e Heckler (2008) publicado na Revista Science, que trouxe exemplos comparativos entre os estudantes que aprendem com uma linguagem simbólica genérica e outros que aprendem com representações baseadas no real. O resultado mostrou que o primeiro grupo (que utilizou representações genéricas) foi capaz de compreender e aplicar em situações-problema mais amplas do que o segundo grupo, que se baseou em representações concretas.

Então por que muitos educadores continuam ainda com essa falácia de que é necessário basear-se no concreto para aprender ideias abstratas?

Na verdade, essa ideia não é totalmente errada, mas talvez mal interpretada.

O psicólogo Daniel Willingham, que há 20 anos estuda sobre a aplicação dos estudos sobre cognição para o ensino, explica que existem muitas situações na sala de aula que não podem ser diretamente explicadas pela ciência. Por isso, a experiência do professor também é um fator importante para o sucesso da aprendizagem. Contudo, ele também pondera que os professores também não podem continuar “perdendo tempo” com algumas falácias sobre o aprendizado que já se mostraram pouco eficazes. Um exemplo disso são os estilos de aprendizagem, que já escrevi a respeito em um post anterior.

Mas, uma coisa que Willingham aponta em seu livro “Por que os alunos não gostam da escola?”, sobretudo no capítulo 1, é que a nossa capacidade de raciocinar está diretamente ligado ao nosso conhecimento prévio. Ou seja, quanto mais exemplos e situações nos depararmos durante a vida, mais natural se torna a transposição de ideias abstratas para outros contextos. Isso se explica pelo fato de que o nosso cérebro é muito “preguiçoso” e tem dificuldade para pensar em muitas coisas novas.

Já no vídeo, dei mais exemplos de como um exemplo concreto poderia funcionar para ensinar alguns conceitos matemáticos (ele estará disponível a partir das 21h).

E quanto ao ensino de algoritmos na matemática?

Eu costumo dizer que, quem ensina apenas algoritmos, não está ensinando a fazer Matemática. Me arrisco a dizer que quem só sabe aplicar algoritmos, não aprendeu Matemática de verdade. Mas, é claro que, essa minha última afirmação não é nada científica e baseada em achados da minha experiência. E isso não é suficiente, do ponto de vista da ciência, para acreditar que essa hipótese minha seja verdadeira.

Para refutar a minha própria afirmação, podemos dizer que existem conhecimentos implícitos, ainda que aplicados com bastante eficiência no cotidiano, que não são fáceis de serem formalizados na escrita. E a escola, muitas vezes, acaba valorizando apenas um tipo de formalização, especialmente na escrita, e pouco de outras habilidades como as orais e práticas.

E essa problemática é tratada com vários exemplos no livro “Na vida dez, na escola zero”. Os autores fizeram vários estudos com crianças e adultos que frequentaram ou não a escola, mas possuem conhecimento prático do cotidiano sobre conceitos matemáticos. Tal eficiência chega a ser até melhor do que os estudantes que aprenderam os conceitos apenas por meio de problemas fictícios e formais na escola. Entre esses conceitos estão: operações aritméticas, análise combinatória e cálculo de proporções.

E é nesse ponto de vista que acredito, sim, que o concreto pode ajudar a ensinar a matemática, isto é, entender o concreto como situações vivenciadas pelo aprendiz ou seja a contextualização. Portanto, a importância de variar as estratégias de apresentação do conteúdo em aula é fundamental, não com o objetivo de adaptar a um estilo preferencial de aprendizagem, como alguns acreditam. Mas, para ser possível manter a atenção dos estudantes e também de colocar diferentes oportunidades de aprendizado em um grupo de pessoas que podem ter condições e vivências diversificadas, conforme trazido por Willingham também em seu livro.

E, nesse sentido, usar o material dourado ou outros recursos concretos podem ajudar, em certas circunstâncias, a ensinar alguns tipos de conceitos mais abstratos e generalizáveis. Mas, os materiais manipuláveis por si só, não ajudam necessariamente o aluno a desenvolver conhecimentos mais abstratos. Mesmo porque ninguém faz operações usando cubinhos ou palitos de sorvete no dia a dia. Por mais que seja mais fácil contar cubinhos do que escrever cálculos no papel, essa ação não é totalmente natural. É uma tentativa de didatizar uma ação similar ao do cotidiano, mas a própria ação é abstrata o suficiente para fazer esse paralelo com o real. Uma contextualização mais viável de contagem seria pensar em situações de compra e venda, por exemplo, fazendo a contagem de cédulas ou moedas, que podem diferir de acordo com o valor que estão sendo representando nelas. (Por exemplo 10 moedas de 10 centavos representa o mesmo valor que uma moeda de 1 real).

Por isso, uma das razões de alguns alunos não gostarem da escola é por sentirem-se que os seus saberes práticos não se aproximam do conhecimento formal, ou melhor, tais saberes são negligenciados. No caso particular da Matemática, por exemplo, não saber representar as contas por meio do algoritmo tradicional de operações no papel não significa que o sujeito não saiba fazer contas. E o inverso também é válido. Saber repetir o algoritmo, também coloca certos estudantes em uma posição “acrítica” que, muitas vezes, não sabe avaliar se o resultado apresentado faz algum sentido. No livro de Nunes, Carraher e Schliemann são dados vários exemplos como esse.

Para terminar esse post, quero dizer que compreender ideias abstratas dependem basicamente de: diversificação do conhecimento prévio e a capacidade de generalizar situações para diferentes contextos daqueles aprendidos originalmente.

Particularmente, a compreensão de situações e esquemas para aprendizagem de matemática têm sido o meu objeto de estudo desde o mestrado, apoiando-se na Teoria dos Campos Conceituais de Gérard Vergnaud. Espero ainda escrever um dia um post específico falando sobre essa teoria que venho estudando há muitos anos.

Se tiver curiosidade para ler os livros que citei neste post, seguem as referências completas. E deixe nos comentários qualquer outra dúvida que você tiver sobre ensino de Matemática que queira saber mais.

Título: Por que os alunos não gostam da escola?
Autor: Daniel T. Willingham
Tradutor: Marcos Vinícius Martim da Silva; José Fernando Bitencourt Lomônaco
Editora: Artmed
Crédito da imagem: amazon.com.br

Título: Na vida dez, na escola zero
Autor: Terezinha Nunes, David Carraher e Analúcia Schliemann
Editora: Cortez
Crédito da imagem: amazon.com.br